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Opinião: Pandemia, caos e conflitos sociais

De consciência quase global, pelo menos por parte das pessoas mais avisadas, é o fato de que as pandemias constituem um tema desafiador, à extensão dos tempos, bastante atual, em virtude da larga duração no curso da história e das ocorrências que ameaçam a vida humana e nos situa perante a foice da morte.


No artigo da semana imediatamente passada, nossa reflexão indicava o risco iminente de vermos parcela significativa da população nacional pobre ser empurrada para os lixões, não feita catadores de materiais recicláveis, como já ocorre, e sim para buscarem, em meio aos urubus, restos de alimentos apodrecidos para saciar a fome, como vimos em passado recente.


Com vistas a evitar essa tragédia humana, cobramos o retorno imediato do auxílio emergencial, cuja reedição tem a resistência do carrasco ministro da Economia, Paulo Guedes, insistindo na chantagem sobre o Congresso, de que será necessário reduzir o orçamento em educação, segurança e saúde em plena pandemia. Agora junta-se a ele o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que ameaça aumentar a taxa de juros como compensação ao pagamento do auxílio.


Em texto concernente ao mesmo tema, publicado dias antes, o professor e doutor em Economia Edilberto Pontes, do Tribunal de Contas do Estado – TCE, faz uma análise sobre a realidade fiscal do País, e sugere a renovação dos decretos de calamidade pública, assim como a prorrogação dos auxílios emergenciais, além da retomada dos investimentos públicos, como expediente para se evitar o agravamento do caos, que aportará consequências sociais muito mais penosas. Ele chama atenção para o risco da ocorrência de ondas de saques a supermercados e ao comércio em geral, em todo o Brasil.


A propósito da exacerbação da crise ora vivenciada, impõe-se evidenciar que,


“[...] a literatura internacional sobre desigualdades sociais (econômicas ou ‘verticais’) e conflitos mostra que não ha ligação entre as duas variáveis, pois muitos conflitos ocorrem em países que não têm altas taxas de desigualdade de renda e muitos ‘países desiguais’ não têm conflitos.” (OSTBY, 2003; STEWART, 2010)

Em suma, nem sempre as desigualdades sociais resultam em revoluções, conflitos armados ou mudanças políticas radicais. Essa é a realidade do País, com o registro de altas taxas de desigualdades, mas, felizmente, ainda sem conflitos. Melhor será, entretanto, não ficar indiferente à situação agora emersa da pandemia.


Nesse contexto,

“[...] o então secretário-geral das Nações Unidas, Koffi Annan (1999), enfatizou a necessidade de lidar com as chamadas ‘desigualdades horizontais’ entendidas como aquelas ‘desigualdades sistemáticas entre grupos culturalmente definidos’, que podem incluir grupos étnicos, regionais, linguísticos, urbanos versus rurais, entre outros”. (STEWART, 2002).

Ao contrário do que pensam as autoridades monetárias do governo, que não parecem muito preocupadas em encaminhar uma solução para o problema da falta de renda e da miséria desse contingente de pessoas (deixadas à míngua como consequência da pandemia, e que hoje passa fome, mora em baixo de pontes e viadutos, inclusive crianças recém nascidas), aqui não nos reportamos a filantropia, e sim falamos de economia.


Recorremos, pois, à ideia de viabilizar para essas pessoas um mínimo de poder de compra para sua sobrevivência, estabelecendo uma solução para que se evite a formação de tensões agravadas na população, susceptíveis de resultar em conflitos sociais de consequências imprevisíveis. Saques e invasões seriam apenas poucas dessas consequências. O Presidente, aliás, que só pensa na reeleição em 2022, deve atentar para o fato de que submeter muitos milhões de brasileiros a essa situação de indigência, decerto, lhe custará a derrota.


Sobre o descaso do Governo brasileiro em relação à gravidade do problema da miséria provocada pela covid, para o qual estamos chamando a atenção, sugerimos a leitura de um relatório produzido por três técnicos do Fundo Monetário Internacional-FMI. Nesse documento, os economistas Philip Barrett, Sophia Chen e Nan Li procedem a um minucioso levantamento dos conflitos sociais ocorridos no Mundo em tempos de pandemia, desde 1832, quando eclodiu a epidemia de cólera-morbo (causada pela bactéria Vibrio cholerae ou vibrião colérico), largamente disseminada na cidade de Paris, e que fez rebentar as consequências dos conflitos sociais no período.


No mencionado ensaio os investigadores demostram que a propagação da doença exacerbou as tensões entre as classes sociais, onde “[...] os ricos culpavam os pobres de disseminar a doença” (os estudos no Brasil, evidenciam que foram os ricos que de volta de suas viagens de férias iniciaram a propagação do coronavírus – e, em Fortaleza, o Meireles, bairro com o mais alto IDH, detém o maior índice), enquanto os pobres diziam estar sendo envenenados”.


O resultado dessa animosidade, rapidamente, se voltou contra o rei, Luiz Felipe I (1830/1848), também conhecido como “o rei burguês. O ápice dos conflitos ocorreu após a morte do general Jean Maximilien Lamarque, vítima da pandemia, que era defensor das causas dos pobres; na sequência, eclodiram as grandes manifestações de rua contra o governo, que reagiu com violenta repressão à rebelião popular, conforme certifica o aludido relatório.


Ante as características de pouco apreço pela democracia do atual desgoverno, e do descaso ostensivo no combate à pandemia - no âmbito do qual a falta de oxigênio em Manaus é emblemático do que afirmamos - não seria exagero pensar que essa posição de indiferença objetive estimular essas tensões até o limite de uma revolta popular, para que o mandarim do momento (rei da ignorância e do negacionismo) execute as ameaças que faz recorrentemente à Nação, desde que assumiu. É imperioso adverti-lo, no entanto, de que o efeito não será, de modo algum, aquele que tanto acalenta.


Ainda sobre o estudo publicado pelos técnicos do FMI, buscando identificar as causas da potencialização dos conflitos sociais resultantes do agravamento das crises em tempos de pandemia, eles afirmam que “[…] desde a Praga de Justiniano e a Peste Negra até a Gripe Espanhola de 1918, a história está repleta de exemplos de surtos de doenças que deixaram uma longa sombra de repercussões sociais, que moldaram as políticas, subverteram a ordem social e, em alguns casos, acabaram provocando instabilidade social. Por quê? Uma possível explicação é que uma epidemia pode revelar ou agravar fissuras pré-existentes na sociedade, como redes de proteção social inadequadas, desconfiança nas instituições ou uma percepção de indiferença, incompetência ou corrupção do governo”.


“[…] Historicamente” – prosseguem – “os surtos de doenças contagiosas levaram também a hostilidades étnicas ou religiosas ou ao agravamento de tensões entre as classes econômicas”. Malgrado os numerosos exemplos, os quantitativos sobre a ligação entre epidemias e conflitos sociais são escassos, limitando-se a episódios específicos. Estudo recente do FMI preenche essa lacuna, oferecendo evidências internacionais desse vínculo nas últimas décadas.


No contexto da realidade em curso no País, vale recobrar uma frase de Buda (Sidarta Gautama) sobre a natureza dos conflitos: “[…] o conflito não é entre o bem e o mal, mas entre o conhecimento e a ignorância”. Não é preciso dizer mais.





Arnaldo Santos é jornalista,

sociólogo e doutor em Ciências Políticas

e colunista do Jornal OPOVO











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