Há um farol centenário se esfacelando na orla espremida entre os dois principais pontos turísticos de Fortaleza: a Praia do Futuro e a Beira-Mar. Numa comunidade indesejável ao turismo e onde até hoje falta o básico ―chamada Titanzinho―, ele é o castelo tomado pelos meninos da praia, que, na falta de opções de lazer, fingem ser piratas e escorregam pelas muretas pedregosas em uma guerra improvisada.
De tanto tomar aquele castelo na infância ―o único possível em meio à pobreza―, Kátia Cilene criou raízes no farol. É por isso que agora ela chora ao mostrá-lo aos pedaços, como se nada fosse o suficiente para mantê-lo de pé.
O Farol Velho, que durante tantos anos iluminou a enseada do Mucuripe e norteou as embarcações, foi tombado patrimônio histórico em 1983. Desativado, está no brasão do Ceará. São os “olhos do mar” da música famosa do cantor cearense Ednardo. Mas, sem qualquer reforma há mais de 40 anos e fincado em um bairro pobre da cidade, parece ter se tornado tão invisível aos olhos do Estado quanto a comunidade que o rodeia.
“Aqui fizemos a nossa vida, a nossa cultura, o nosso lazer. Mas o poder público nos deu as costas”, queixa-se Kátia Cilene Silva de Lima, de pé na escadaria da edificação condenada pelas autoridades com registro de risco de desabamento há pelo menos uma década.
Há duas semanas, a cúpula de metal onde ficava a luz que iluminava o mar, acendida pela primeira vez há 150 anos, desmoronou e um morador do bairro a levou para casa para guardá-la. Por sorte ninguém se machucou. Dentro do farol, a maresia corroeu o ferro da escada circular, agora sustentada apenas pelas laterais de alvenaria. Todas as paredes, internas e externas, foram pintadas com o grito de uma comunidade que exige ser vista. Em um cinturão preto desenhado para simbolizar o luto pelo farol que se despedaça, o Titanzinho saúda o visitante: “Bem-vindo ao abandono”.
Kátia Cilene cresceu e criou dois filhos em uma casa que construiu com as próprias mãos pertinho do mar, naquela faixa de praia abandonada ―mas nunca esquecida― com medo de ser expulsa. Ao longo dos anos, viu chegar água, mas não saneamento. A violência aumentou, e as facções foram se apoderando dos espaços enquanto a pobreza crescia.
O bairro costumava ser mal visto por ter tantos cabarés, onde prostitutas recepcionavam marinheiros. Sorte sempre foi ter o mar tão perto, dando peixe para comer e onda para formar surfistas. Houve quem saísse dali para campeonatos mundiais depois de aprender a surfar em um pedaço de tábua diante da omissão de um Estado que não os vê.
A maioria dos cerca de 2.000 moradores da comunidade vive da pesca, do surf ou das empresas de gás natural, petróleo e alimentos que há no entorno.
Eis que Kátia Cilene sai todos os dias de casa e passeia a vista em uma paisagem de tirar o fôlego, com piscinas naturais formadas nas pedras que antecedem o mar, logo adiante.
Mas basta alguns passos e lá está ela cruzando um esgoto a céu aberto que corre na praia rumo às águas. Respira fundo e segue caminhando pelos becos estreitos até chegar à avenida que a levará para outras praias, piscinas e resorts da cidade, onde trabalha como guarda-vidas civil. “Queremos que olhem não só para o farol porque não é só ele que está abandonado, a comunidade também está”, brada.
“Só olham pra gente quando é para tentar nos tirar daqui”
Mas quando funcionários da Prefeitura de Fortaleza começam a circular pelo bairro, lhe vem um frio na espinha. Vão carimbar as fachadas das casas com números ―um dos primeiros passos para mais uma tentativa de remoção por algum projeto novo e espetacular que raramente inclui os que construíram suas vidas no local. “Só olham pra gente quando é para tentar nos tirar daqui”, reclama Francisco Caetano de Souza, de 80 anos, que trabalhou décadas como mergulhador e pescador. É um filme que eles já viram tantas vezes que torna paradoxalmente perigosa até a luta que emplacaram para manter o farol de pé. A última vez tem cerca de dois anos.
Em 2014, a Prefeitura de Fortaleza chegou a apresentar um projeto para restaurar o Farol Velho, segunda edificação mais antiga da cidade. Planejou uma praça, um calçadão de frente pro mar e a retirada de 200 famílias da região.
O projeto até começou a sair do papel à revelia da comunidade, mas logo foi abandonado por falta de verba. Cinco anos depois, o Governo do Estado chegou a negociar a instalação de um estaleiro na região. Ouviu um ruído forte da comunidade e de ambientalistas pelo receio dos impactos à região, um berço de corais e área de desova de tartarugas durante a reprodução.
Agora, enquanto o farol desfalece, o Governo do Ceará diz trabalhar em um novo projeto, depois de ter conseguido uma nova cessão do equipamento pelo Governo Federal no ano passado. Mas não dá prazos nem esclarece se ouvirá a comunidade que construiu um verdadeiro forte para defender aquele território.
“Já tentaram nos tirar daqui e a gente lutou bravamente. As pessoas têm o hábito de dizer que a nossa comunidade é carente, de risco. Mas ela é potente, forte e vai permanecer”, diz Kátia Cilene. Os moradores já não estão munidos das espadas que faziam com pedaços de madeira e de latas na infância, quando simbolicamente tomavam aquele castelo e subiam no topo do farol para ver o mar desde o mirante. “Vínhamos brincando lá de baixo, da praia.
O grupo que pegasse mais gente de lá pra cá tomava o castelo. Dá até vontade de voltar no tempo. É muito difícil ver este farol deteriorado desse jeito”, diz Kátia. O equipamento tombado funcionava também como espaço cultural, com saraus, conversas no entorno e pequenos eventos. Os próprios vizinhos limpavam, pintavam, tentavam mantê-lo vivo.
O que a comunidade quer é vê-lo recuperado para abrigar a memória do artesanato, da pesca e do surf que contam a história do bairro. É que, mesmo depois que o Farol Velho tornou-se obsoleto na década de 1950 e sua luz se apagou no mar, ele foi convertido em castelo no imaginário local. E é hoje a referência em terra firme para o Titanzinho. “Os meninos ainda vêm brincar, mas não podem entrar como antes porque ele pode desabar. Aqui a gente tem uma uma sensação de liberdade imensa”, conta Kátia Cilene.
O farol é o símbolo de uma celebração de pertencimento que esbarra no eterno medo da remoção, que permanece mesmo em um momento como este em que não há um projeto concreto apresentado pelas autoridades. “Eles querem nos tirar daqui por especulação, eu acredito. Moramos em um paraíso escondido. Estamos bem no meio entre a Beira-Mar e a Praia do Futuro, e eles podem dizer que é um empecilho para o turismo fluir”, se queixa Kátia.
O Governo do Ceará espera um relatório do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para esboçar um novo projeto para a área e não adianta se está prevista alguma remoção. Mesmo assim, a comunidade segue desconfiada. “A nossa casta não tem valor porque não tem dinheiro”, justifica Francisco Caetano de Souza. Conhecido como Chicão, o pescador chegou ao Titanzinho quando as ruas ainda eram de areia e a delegacia funcionava em uma casa de taipa. Quase não havia construção de alvenaria, e ele estava com medo se conseguiria refazer a vida ali.
“Tenho uma vida aqui com a raiz forte. Vai ser difícil me arrancar”
Ele vinha de uma remoção da praia do Mucuripe para a construção do calçadão turístico da Beira-Mar e da avenida que agora separam o mar dos prédios de luxo.
Décadas depois, Chicão não está nem um pouco disposto a mudar outra vez do lugar onde criou os filhos e netos, em uma casa de costas para o mar que a maré de janeiro insistia em alagar. “Hoje a maré não alaga mais, não vejo risco nenhum aqui. Este é o melhor lugar que tem pra nossa casta, dos pobres. Aqui só passa fome quem for preguiçoso porque peixe o mar dá”, defende. Kátia Cilene também não quer arredar o pé: “Tenho uma vida aqui com uma raiz muito forte. Vai ser difícil me arrancar”. O que eles querem é restaurar o castelo e deixá-lo vivo para os meninos da praia.
Fonte ElPaís
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