Em entrevista ao Correio, Maria Ivatônia dos Santos fala sobre os desafios da carreira, os perigos da desigualdade social e as consequências do racismo.
“Não se é negro impunemente”. Esta frase foi repetida algumas vezes ao longo dessa entrevista, parafraseando Silvio Almeida, filósofo e advogado. Não à toa. Para deixar claro que esta é a realidade de uma sociedade que tem como fundamento o racismo. Como mulher e negra, Maria Ivatônia dos Santos, primeira desembargadora negra do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em 59 anos de existência da Corte, sabe do que fala.
“Basta ser negro. A conduta racista vai chegar. Seja na forma de jogar bananas no campo de futebol para o jogador negro, seja na forma “o elevador de serviço está bem ali e funcionando”, seja na forma do elogio (“você é um-a negro-a de alma branca”, “jamais te vi como um-a- negro-a”, “meus amigos não têm cor”). Evidentemente já fui destinatária de muitas práticas racistas”, detalha a desembargadora nessa entrevista ao Correio.
Filha de professor, defensora das cotas raciais, com trajetória profissional que inclui as funções de delegada, juíza atuante na área criminal, em vara de entorpecentes, no Tribunal do Júri e na Auditoria Militar, Ivatônia conta o que significa ser a única negra como desembargadora. “Ser uma presença feminina, negra e solitária no TJDFT significa exatamente ser uma presença feminina, negra e solitária na maioria dos espaços de representatividade e de poder neste país.”
Com absoluta razão, ela diz que ainda precisamos avançar muito. “Diz muito o fato de a parte e o advogado perguntarem ao juiz (negro) a que horas o juiz vai chegar”, exemplifica. Para a desembargadora, é preciso, primeiro, reconhecer que racismo, velado (o pior) ou escancarado, está na raiz de tais diferenças.
Além disso, é necessário olhar para o próprio Judiciário, masculino e branco, que resiste ao enquadrar práticas criminosas contra o negro como racismo. “A impunidade constitui incentivo a práticas racistas. Inclusive a instituição do tipo da injúria racial significou uma ‘excelente alternativa’ à não definição, em concreto, do tipo do racismo, mais grave, inafiançável, imprescritível”, observa.
Em relação à pandemia, para além da desigualdade gritante, polarização e vantagens indevidas, a desembargadora acredita que a pandemia trouxe a “pausa necessária” para se voltar a si mesmo.
“A pandemia significou um ‘ressignificado’ na minha vida. Defini o que realmente tem valor (o que significa ir atrás de amigos queridos cujo contato estava meio perdido); que o olhar compassivo precisa se acentuar, mas guiado pelo bom senso. Já sei o que colocar na mochila se tiver que sair correndo, enfim... parece que me tornei uma pessoa melhor”, diz.
Ser a primeira desembargadora negra em 59 anos do Tribunal de Justiça do DF representa o que na sua vida, na história da magistratura e para milhares de meninas negras que sonham alcançar um posto tão importante?
O sonho da magistratura veio muito cedo (8 anos) e de forma muito clara. Poderia ter seguido outros caminhos (um professor muito querido me disse certa vez que o bom é ser guiado pela ideia de que as coisas são possíveis; pode ser que não aparentem sê-lo, mas isto é mera aparência).
E o TJDFT (Tribunal de renome e tradição) atraiu-me desde que, finda a graduação, defini a meta e o caminho a percorrer. Integrar a magistratura deste Tribunal significa um objetivo alcançado, estar no lugar e na posição que me pertencem por esforço, merecimento e direito. E o sonho é o de que outras “meninas negras”, que, eventualmente, comunguem sonho parecido, não se deixem esmorecer pelas várias, inúmeras, múltiplas dificuldades. Que ergam a cabeça, definam estratégias, procurem grupos de apoio… e sigam em frente!
Como a senhora encara a sua presença solitária, como mulher negra, no TJDFT? Quanto ainda precisamos avançar para que isto não seja encarado como novidade?
Ser uma presença feminina, negra e solitária no TJDFT significa exatamente ser uma presença feminina, negra e solitária na maioria dos espaços de representatividade e de poder neste país que se diz verde-amarelo (por força de uma linda imagem poética), mas que resiste a incorporar outras cores, especialmente o rosa e o carvão. Ainda precisamos avançar muito. Diz muito o fato de a parte e o advogado perguntar ao juiz (negro) a que horas o juiz vai chegar. Do que precisamos? De reconhecimento de que racismo, velado (o pior) ou escancarado, está na raiz de tais diferenças. De que constituímos uma sociedade eminentemente racista. De ações afirmativas. De políticas educacionais.
A senhora já foi vítima de racismo dentro e fora dos tribunais?
Diz o querido Silvio Almeida: “não se é negro impunemente”. Ou seja: basta ser negro. A conduta racista vai chegar. Seja na forma de jogar bananas no campo de futebol para o jogador negro, seja na forma “o elevador de serviço está bem ali e funcionando”, seja na forma do elogio (“você é um-a negro-a de alma branca”, “jamais te vi como um-a- negro-a”, “meus amigos não têm cor”), seja na forma do que costumo denominar “silêncio gelado” (quem quiser saber o que isto significa, procure levantar uma pauta contra o racismo em outros grupos, coloque uma matéria para comentários, convide para um seminário).
Evidentemente, já fui destinatária de muitas práticas racistas. Na escola, nos locais onde residi, nos locais em que trabalhei, nos locais aos quais a vontade de viajar me levou. Afinal, “não se é negro impunemente”.
Historicamente, a mulher negra brasileira tem sido mantida nos extratos sociais menos favorecidos. Comparada à mulher não negra, as mulheres negras têm menor salário. Também sofre mais assédio moral no trabalho do que a mulher não negra. Há formas de mudar esse quadro, promover melhores salários e reduzir o assédio moral contra mulheres negras? Quais alternativas?
Sim, a mulher negra, na “pirâmide de Kelsen às avessas e piorada”, é colocada abaixo da base que sustenta toda a estrutura. Desemprego, subemprego, salários menores, inviabilidade de ascensão, assédio moral constituem a experiência das mulheres negras, duplamente “penalizadas”: negras e mulheres. Alternativas? Políticas afirmativas; enfrentamento sério do problema pelas instituições; mudança na legislação; trabalho educacional.
Pela lei, as cotas nas universidades precisarão ser revistas, com possibilidade de extinção, daqui a exatamente um ano. A senhora não usou cotas para ingressar no serviço público, mas é uma defensora do programa. O que acha que cabe ser feito pela manutenção das cotas?
Sou defensora das cotas nas universidades, assim como em outros espaços. Por razões óbvias, dentre as quais destaco a absoluta necessidade de reduzir as diferenças de oportunidades em um país que constitucionalmente se afirma constituir um “Estado democrático de Direito”.
A senhora atuou na área de auditoria militar e foi delegada, ainda há hoje tratamentos diferenciados por parte da polícia conforme a cor do "suspeito"?
Fui delegada de polícia no estado de Goiás. Juíza de direito no TJDFT, na área criminal, atuei em vara de entorpecentes, Tribunal do Júri e auditoria militar. Ter sido delegada de polícia e, posteriormente, juíza de direito, significou-me uma grande vantagem: conhecimento dos dois lados.
Compreender a abrangência, implicações, reflexos, influência dos trabalhos de investigação sobre a atuação judicial. Neste espaço limitado de discussão, arrisco-me a dizer que o policial, integrante desta sociedade racista, acaba por escolher, conscientemente ou não, o “alvo”, o “suspeito”, normalmente negro.
E diz muito o fato de que um branco, em momento em que a chuva desaba, correndo na praia de Copacabana (ou qualquer outro lugar da Zona Sul do Rio de Janeiro) nada mais significa que alguém querendo se proteger; e um negro, na mesma situação, pode significar algo completamente diferente, máxime se o branco estiver à sua frente (Meu amigo Libânio, inteligentemente, tem a mesma compreensão).
E a “escolha” (consciente ou não) do policial acaba aceita pelo Ministério Público, que denuncia, e pelo juiz. E, bem ou mal, o fato é que a população encarcerada é, majoritariamente, negra. Mas a discussão é muito maior e mais abrangente. Pus a resposta nos limites da questão posta.
Como a Justiça e o Direito se adaptaram para as novas demandas da sociedade diante da pandemia?
Face à pandemia, não me pareceu ter havido grandes mudanças no direito. O que tenho como efeito direto da pandemia se relaciona à prestação da tutela jurisdicional. Antes, presencial e mais limitada a espaço e tempo. Hoje, on-line, remota, e, do que se tem, ininterrupta. Pelo menos no meu Tribunal, no qual se percebe que o grande desafio é instituir rotina de trabalho para evitar que não constitua o trabalho a única realidade e atividade possíveis.
A tecnologia é também uma ferramenta cidadã. Como é possível reduzir os gargalos burocráticos da Justiça? A crise sanitária tem cobrado respostas rápidas de instituições e da sociedade.
A pandemia escancarou o que era sabido: as diferenças sociais. Afinal, acesso a internet ainda não é para todos. E sabemos quem sofreu com o fato de não ter podido participar de aulas virtuais, que teve que se deslocar até os fóruns para participar de audiências... Não sei o que significa, no ponto, “gargalos burocráticos da Justiça”. Mas, no TJDFT, pareceu-me bem acentuada a preocupação no sentido de reduzir ao máximo as dificuldades dos jurisdicionados.
A que atribui o pequeno número de mulheres nos cargos de comando da Justiça?
Pequeno número de mulheres nos cargos de comando de Justiça significa: primeiro, poucas mulheres na Justiça. E as razões estão lá atrás, nas razões por que mulheres podem não significar um número tão representativo. Segundo e mais importante: maioria masculina, mais difícil o reconhecimento da capacidade feminina.
As mulheres precisam trabalhar mais do que os homens para obter o mesmo reconhecimento. A senhora enfrentou discriminação e preconceito ao longo da sua carreira?
Discriminação e preconceito são a tônica da vida da mulher negra. “Não se é negro impunemente”.
A senhora é filha de um professor. Qual a importância desse fato na sua formação? Tem boas lembranças de sua vida escolar? Quem a inspirou para seguir a carreira de juíza?
O fato de ter tido um pai professor significou toda a diferença para mim. O amor pelo conhecimento e pela Justiça vieram-me dele. Negro, inteligente, estudioso, amigo, pai, companheiro exemplar. Ele foi, é e sempre será a minha inspiração na carreira que escolhi.
Quais os maiores obstáculos que enfrentou durante sua trajetória até chegar ao TJDF?
Quem é negro sabe bem: talvez não tenha estudado na melhor escola preparatória; geralmente precisa trabalhar durante o dia e estudar à noite; precisa entender que entre adquirir um livro, pagar um curso, participar de um webnario, muita coisa vai ficar para trás; saber que, normalmente, curso de línguas será muito mais na frente (e não ao mesmo tempo do ensino fundamental).
Que conselhos daria aos jovens que sonham seguir sua carreira?
Conselhos que eu daria a quem sonha ingressar na magistratura: certifique-se de que, efetivamente, é aquilo para o qual nasceu, aquilo por que sacrifica grande parte do seu lazer, da sua liberdade individual. Se ainda assim sua resposta for positiva, vá atrás. Procure se preparar, saiba que há espaços e profissionais voltados ao auxílio de jovens negros .
Que relação a senhora vê entre a criminalidade e a falta de acesso às políticas públicas?
Existe toda uma “imbricação” entre falta de acesso a políticas públicas e criminalidade. Muita coisa a dizer. Lugar comum que prescinde de uma resposta mais extensa.
Os agressões aos negros, com palavras e gestos, foram banalizadas no país. "Macacos" e outras expressões depreciativas parecem fazer parte do vocabulário dos racistas. Por que tudo é tratado como injúria racial, e não como racismo? Não está na hora de romper com essa tênue linha que diferencia "injúria" e "racismo"? A impunidade não seria um estímulo à continuidade das afrontas e agressões aos negros?
Sim. A impunidade constitui incentivo a práticas racistas. Inclusive a instituição do tipo da injúria racial significou uma “excelente alternativa” à não definição, em concreto, do tipo do racismo, mais grave, inafiançável, imprescritível, etc… “De onde fala o Juiz” foi tema de pesquisa de uma juíza (branca, diga-se), Gabriela Lenz, leitura que recomendo.
E não será novidade nenhuma a conclusão: “O Judiciário é masculino e branco”. Isto talvez explique a “dificuldade” na definição do crime de racismo (afinal, “não somos racistas… tanto que temos vários amigos negros”; ou mesmo “não sei por que você assume esta bandeira; ninguém te vê como negro”; ou mesmo “quanto mi mi mi”).
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que 77,5% das vítimas de violência são jovens negros. As balas perdidas são, em sua maioria, achadas em corpos negros. Para os movimentos antirracistas, trata-se de genocídio do povo negro. Como a senhora interpreta esses dados?
Infelizmente, “as balas perdidas, em sua maioria, são achadas em corpos negros”. Interpreto isto com muita tristeza… E me lembro de uma jovem e querida atriz (não digo o nome porque não fui autorizada) que, quando soube que estava grávida de um filho (e não de uma menina), chorou desesperadamente… Sabia que nada o protegeria. Se o menino saísse, seria “confundido”; se corresse, seria péssimo; se ficasse, pior ainda...
Uma das faces mais cruéis da pandemia é o aumento da violência doméstica e do número de casos de feminicídio. O que fazer para mudar essa realidade?
Diminuir o número de casos de feminicídios exige compromisso entre os Poderes, exige participação da sociedade, exige políticas públicas. Na verdade, o que sempre exigiu e a pandemia só escancarou.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade? É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão? O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
A pandemia escancarou as diferenças sociais, econômicas, políticas… Mostrou as polarizações. E o lado terrível de tudo isto. Demonstrou o que sempre foi dito: nada melhor que situações de sufoco, de restrições, para acúmulo de vantagens indevidas, enriquecimento... De outro lado, e do lado dos que não se aproveitaram da situação para satisfazer seus escusos interesses, o certo é que a solidariedade se fez mais presente na vida das famílias, dos amigos, dos colegas, dos casais.
Saber que, verdadeiramente, a vida é finita (e basta um reles coronavírus), que o que importa, efetivamente, não é o dinheiro (que você não terá como gastar), nem as roupas de grandes marcas (que você não terá porque vestir), mas a diferença que você fez, faz e fará para o bem. Esta foi e está sendo a grande diferença. E é possível, sim, ter um olhar poético.
A pandemia significou a “pausa necessária”, o “voltar para si mesmo”, o refazer aquelas perguntas “de onde vim, quem sou, para onde vou”, e o que vou fazer de agora em diante “se e somente se” isto me for permitido.
E para a senhora?
Sim, a pandemia significou um “ressignificado” na minha vida. Defini o que realmente tem valor (o que significa ir atrás de amigos queridos cujo contato estava meio perdido), defini que, na pandemia, o olhar compassivo precisa se acentuar, mas guiado pelo bom senso, já sei o que colocar na mochila se tiver que sair correndo, enfim... Parece que me tornei uma pessoa melhor.
Este é o meu olhar poético sobre tudo. Para aliviar a tensão, acentuei práticas de meditação, caminhadas longas e aceleradas, prestar atenção no que é de graça (as árvores, o vento, o mar e o sol, a noite e os passarinhos, e viva Thiago de Melo!), profunda atitude de gratidão a tudo que me vem, a minha família, a meus amigos, às pessoas que aparentam significar alguma dificuldade (e a quem agradeço profundamente, porque significam, exatamente, oportunidade de ascensão).
Mas devo confessar: sinto muita falta de abraço… Nós, goianos e tocantinenses, somos do contato físico, do olho no olho, da gargalhada. Isto me fez muita falta...
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós pandemia?
As grandes questões da humanidade continuam… A pandemia só se prestou a reforçar a premência do olhar que se deve ter sobre elas.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Pessoalmente, se engajou em alguma atividade coletiva — a distância ?
Efetivamente, o momento exige resiliência e ativismo solidário. E, finalmente, engajei-me em projeto que se destina à formação de meninas negras em relação a atividades jurídicas. De meia-noite a 6 horas só durmo, então posso me organizar e orientar jovens meninas negras naquilo que não significa tanta dificuldade para mim. Com a modéstia que me é peculiar, creio poder ajudar bem na parte da construção do pensamento lógico, crítico, construtivo, transformador.
Que ensinamento este momento nos deixa?
O ensinamento que este momento nos deixa não é animador. Mas também não é surpreendente. Humanos, falhos, gananciosos… Tendemos a tomar o que não nos pertence. Mas o outro lado continua, só precisa ganhar força!
Fonte Correio Braziliense
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